as meninas podem ser mais sozinhas que as velhas

Maria Carmem tem 11 anos quando decide escrever um livro sobre aquele ano, relatando as novidades no relacionamento de seus pais. Embora solitária e depressiva, a narradora é divertida e traz novos olhares sobre as obviedades cotidianas. Sua presença constante na loja da família, especializada em produtos cirúrgicos e ortopédicos, facilita um mergulho nas suas primeiras noções amargas e obsessivas sobre o tempo e a morte.

"Minha mãe disse na época que era porque a vovó era inteligente demais, daí tinha gastado a cabeça mais cedo do que devia, e eu fiquei com medo de ser inteligente. Às vezes minha mãe vai falando as coisas achando que eu vou esquecer e tudo bem. Quando eu tiver uma filha vou saber que ela não esquece e que eu não posso sair falando qualquer coisa.
A vovó foi ficando meio bebê, mas um bebê pesado e enrugado, e difícil de lavar, e às vezes ela ria demais, e à toa, e depois berrava, sem motivo também, um bebê gigante, e eu fazia carinho no cabelo dela, mas quase já não tinha cabelo.
Antes de ficar doente, ela era muito sozinha, daí algumas tardes minha mãe me enviava pra fazer companhia pra ela, mas na verdade eu fazia solidão. As duas ali no sofá, quase no escuro, competindo qual solidão conseguia alcançar o teto. Eu acho que as meninas podem sim ser mais sozinhas que as velhas".