OS ANOS IMBECIS

Romance surpreendente, dinâmico, em linguagem inovadora e de elevado quilate literário. Baseado na história real de um escândalo criminoso protagonizado por uma grande farmacêutica no Brasil, nos anos 80, narra em primeira pessoa, num relato intimista e poético, a trajetória de um personagem bastante complexo, médico, que presenciou tal caso durante sua graduação. Conduzido por uma paixão súbita e avassaladora por Tereza, uma mulher sedutora e misteriosa que ele conheceu em um estágio em Barcelona, alterna memórias infantis que o marcaram com o medo da morte - motor de sua escolha profissional – de seu casamento falido, bem como diálogos com um paciente nonagenário semidemenciado, pleno em reflexões filosóficas mordazes. Seu tédio na vida cotidiana é interrompido pela queda vertiginosa em um roteiro de tragédia e suspense. Há um explícito paralelo simbólico com a Odisseia de Ulisses, no papel de sereia trágica que Tereza desempenha ao arrastar o personagem, numa virada abrupta, de sua navegação aborrecida e segura para as rochas perigosas de uma aventura involuntária. Desde o início, o narrador revela sua instigante condição de estar consciente da iminência de sua morte, o que o põe liberto de amarras sociais e morais, em condição análoga à de seu paciente idoso, ambos entregues a uma sinceridade própria dos condenados. Permite-se, portanto, a uma fragmentação peculiar em seu fluxo de pensamento narrativo, com marcenaria de encaixes precisos, angustiado por perpetuar-se através não só do relato de sua história, mas igualmente do compartilhamento de seus pensamentos, seu desencanto e de sua visão ácida e crítica do mundo e das pessoas que o habitam. Em um delírio lisérgico, ambientado no ano de 1999, vislumbra profeticamente o tempo presente, numa atualização do texto apocalíptico de João. Insinua-se uma regressão continuada em direção à barbárie. As delinquências não punidas da década de 80 favorecendo condutas posteriores de criminalidade mais ousada da mesma indústria farmacêutica, o poder econômico desprovido de rédeas civilizatórias levando à derrocada da política, a comunicação humana sendo erodida e os vieses cognitivos do Homo sapiens sendo potencializados pela imersão no mundo digital e nas redes sociais, a Ágora antiga sendo suplantada pela superficialidade e polarização histérica próprias de torcidas de futebol, tudo isso conduzindo à corrosão do tecido social, ora em progresso global. O narrador, que não possui nome, percebe-se solitário e desconfortável em um mundo que parece encenar uma revolução anti-iluminista, cada vez mais entregue ao misticismo e à burrice, que tem como única régua a economia, alçada à condição de religião, em contraposição à ciência e ao humanismo. Enfim, uma odisseia contemporânea emocionante, permeada de humor, paixão e poesia, com a vocação cult de nomear nosso tempo presente. E não estará ele carente mesmo de uma alcunha que o resuma?